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Carlos Heitor Cony, Folha SP
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Teclas e botões
RIO DE JANEIRO - Num recorte de jornal, não sei se escorado num fato verdadeiro ou num lance de ficção, no que era pródigo, Sartre narra a história do cidadão que se suicidou e deixou um bilhete explicando a razão do gesto extremo: estava cansado de abotoar e desabotoar os botões da calça.
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Não havia os fechos modernos. O jeito era o cara abotoar e desabotoar botões para tirar as calças ou para outras necessidades. A repetição do gesto encheu o cidadão de náusea, e ele resolveu acabar com a obrigação. Não pensou em andar nu nem em andar com a calça aberta: apelou para a solução extrema, matando-se e libertando-se da náusea, uma náusea tipicamente sartriana.
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Ainda existem muitas coisas que precisam de botões, mas o zíper aliviou pelo menos os botões das calças. Foram substituídos pelas teclas. Teclas do computador e derivados, teclas do telefones celulares, teclas de toda espécie e finalidade.
Ignoro se alguém já pensou em se livrar delas por meio tão radical.
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Mas estamos na idade de pedra em matéria de eletrônica, e um dia haverá alguém que não suportará a obrigação de teclar -e desde já me candidato a não ser o primeiro, mas um dos muitos que estão cheios da obrigação de teclar, desde escrever um texto esquisito como este até a necessária ligação telefônica para receber ou mandar mensagens.
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A culpa não será da tecla, como não foi culpa dos botões. Culpa da monotonia, isso sim. Teclando, pode-se pôr um Airbus no ar, escrever uma epopeia, chatear a vida alheia com uma informação pérfida. Entre perdas e lucros, haverá um dia que não mais suportará a obrigação de procurar a tecla certa.
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Não sei não. Ainda tenho paciência para me aborrecer e aborrecer os outros, mas tudo cansa, e já me considero um pouco exausto de usar teclas, principalmente aquela necessária para deletar tudo o que me vem à cabeça.

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