HAVIA UM MINISTRO DO BRASIL NO REINO DA PRÚSSIA, NO SÉCULO 19. Chamava-se Joaquim Maria do Amaral. Um dia, Otto von Bismarck perguntou a ele: "Qual a bebida que tem no Brasil?"
"Bebe-se cerveja, vinho, conhaque", disse o ministro.
"Bom, mas tudo isso é bebida internacional", ponderou o líder da unificação alemã. "E a própria bebida do Brasil?"
"Não tem."
"Não é possível que não tenha."
"Bom, tem uma bebida que só os escravos é que tomam", disse Joaquim. "Os negros é que tomam."
"Ah, mas quem sabe se é boa? Eu gostaria de tomar isso."
E Joaquim encomendou a cachaça. Como era para Bismarck, fizeram uma cachaça muito boa. Numa reunião, o alemão já chegou falando para o brasileiro:
"Olha aqui! Se os pretos bebem aquilo, por que é que os brancos não bebem?"
Quem nos conta o caso é Sérgio Buarque de Holanda [1902-82], entre risos e brincadeiras, numa roda de entrevistadores. Bismarck adorou a cachaça "dos pretos". Sérgio Buarque arrematou: "Agora isto é histórico". E aqui quem se revelava era ele.
A anedota diplomático-etílica capta algo que já conhecíamos pela obra ensaística de Sérgio Buarque de Holanda: o isolamento racial e social, a ânsia mimética de uma elite precária, o olhar crítico oferecido pela distância -um idiossincrático Brasil no espelho da Prússia.
O erudito de aparência circunspecta era, de perto, um conversador curioso e sagaz. Capaz de se divertir ao perceber, numa viagem à Grécia, que lá os carregadores de malas são chamados "metaphoras", e que nas ruas o povo espera a condução em "ekstasis" (como são conhecidos os pontos de ônibus). A curiosidade diante do cotidiano grego vem do prazer do perfeccionista: ver as palavras em seu sentido intacto.
O livro que reúne tais histórias foi organizado por Renato Martins para a coleção Encontros. Saiu em 2009, com o título "Sérgio Buarque de Holanda" [Azougue Editorial, 214 págs, R$ 29,50] e parece ter passado despercebido pela crítica. Compila 16 entrevistas e artigos do autor e sobre ele, publicados entre 1925 e 1982.
A voz e a argúcia de Sérgio Buarque, traduzidas em falas sintéticas e claras, prevalecem mesmo quando ele parece dar primazia a outros -como nos encontros com os escritores Luigi Pirandello e Thomas Mann. Nas entrevistas, fala da família, comenta leituras e lamenta a precariedade da produção literária nacional: a maior dificuldade da crítica "é a falta de livros que criticar". Isso em 1951.
Emite um parecer categórico - e talvez equivocado- sobre comidas brasileiras: "A pior do Brasil é a da Bahia. O baiano, inclusive, come vatapá frio". Empolga-se com a edição japonesa de "Raízes do Brasil": "A capa é lavável, você pode lavar com água e sabão".
O volume mostra seu inconformismo com o passado e o presente brasileiros, a ausência de democracia, a mesquinharia do autoritarismo. Ganha força a figura do intelectual insatisfeito, sempre a exigir mais de uma República incapaz de ultrapassar os limites de sua constituição oligárquica e a instabilidade dos sucessivos governos, dos acordos espúrios e mascaramentos.
Há o cidadão insatisfeito, que participou da fundação dos partidos dos Trabalhadores e Socialista Brasileiro. E também o escritor insatisfeito com seus escritos, mesmo quando eram celebrados e atraíam seguidores. Insatisfação pública e privada, sempre positiva e propositiva, marcada pela ironia, pela abertura ao humor.
A nova edição do extraordinário "Visão do Paraíso - Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil" [Cia. das Letras, 584 págs., R$ 49, previsto para 1º/6] inclui uma cronologia e dois posfácios, além do texto estabelecido a partir da última edição publicada em vida, de 1969.
Em seu posfácio, Laura de Mello e Souza analisa o impacto do livro em seu tempo e seu significado decisivo para a historiografia. Destaca o empenho de Sérgio Buarque em passar em revista a história colonial portuguesa e espanhola. O segundo posfácio, de Ronaldo Vainfas, apresenta brevemente o livro no contexto da obra do autor e sua limitada recepção entre os anos 1960 e 80.
A leitura, hoje, de "Visão do Paraíso" -como Laura de Mello e Souza observa-alastra as possibilidades do livro e difere bastante da que foi possível quando de suas primeiras apresentações públicas- na forma de tese de concurso, em 1958, e de livro, em 1959. Para a historiadora, "ninguém, até hoje, enfrentou 'Visão do Paraíso', analisando-a por dentro, articulando-a aos demais livros desse grande historiador".
Laura aponta a singularidade de Sérgio Buarque na historiografia brasileira e o estranhamento provocado pela abordagem "na contramão das ideias dominantes entre os historiadores portugueses e brasileiros da época", ao projetar "um mito antiquíssimo, venerando, na história". Singular também é a "linguagem barroquizante, presa aos textos que Sérgio lera incessantemente por toda a década de 1950".
Dez anos depois, ao chegar à segunda (e alterada) edição, o livro confirmou sua rota alternativa, sobretudo pelas opções teóricas e metodológicas. A novíssima edição de 2010 -em que saltam aos olhos a precisão e o tratamento editorial atento - revela outras dimensões do trabalho.
Sérgio Buarque explorou os estranhos labirintos em que se perdeu, e ocasionalmente se achou, o futuro da América Latina. Projetou a discussão continental na tela brasileira para, como o fez em toda a sua obra, interpretar o Brasil. Com a precisão que o caracterizava, percorreu a formação de um repertório de representações das novas terras e das estruturas mentais que ininterruptamente a inventaram e reinventaram.
A publicação póstuma, em 1991, dos "Capítulos de Literatura Colonial", que Sérgio Buarque escreveu simultaneamente à "Visão do Paraíso", também ajudou a alterar o olhar do leitor e a expor o entrelaçamento entre literatura e história.
O cotejo das obras nos oferece o olho mágico para seu laboratório de escrita e interpretação, para a combinação constante de estratégias analíticas e estilísticas da crítica literária e do fazer historiográfico. Num tempo em que Sérgio Buarque trabalhava nas duas frentes (pouco depois, abandonaria a crítica de ficção para se concentrar na pesquisa de história), é notável sua percepção da importância desse diálogo.
Por mais importante que seja a reedição de "Visão do Paraíso", a maior novidade das novas publicações, no entanto, é o lançamento de um conjunto inédito de escritos, aquele a que o autor se dedicava nos últimos anos de vida e que surge agora com o título de "Capítulos de História do Império - Manuscritos" [Cia. das Letras, 256 págs., R$ 42, previsto para 1º/6].
A introdução, assinada por Fernando Novais, fiel depositário dos manuscritos, limita-se a esclarecer os critérios de organização dos textos e seu provável destino. Não se preocupa em analisá-los ou discuti-los, deixando para que outros historiadores o façam.
O material original, 150 páginas datilografadas e corrigidas à mão, seria uma reescritura do último tomo, integralmente escrito por Sérgio Buarque, do conjunto "O Brasil Monárquico", da "História Geral da Civilização Brasileira", editada sob sua coordenação.
Publicado em 1972 com o título "Do Império à República", o livro seria relançado em dois volumes. Como destaca o posfácio de Evaldo Cabral de Mello, o material dá prova da incrível disposição de Sérgio Buarque para, com mais de 70 anos de idade, recomeçar uma obra. Julgada imperfeita pelo próprio autor, é dos mais importantes textos sobre o período.
Mais uma vez é a figura do autor "perfeccionista" e "insatisfeito"-conforme a descrição por Fernando Novais, na introdução- que dá as caras e deseja desenvolver questões que ficaram de fora de "Do Império à República". Circula por temas direta ou enviesadamente relacionados com o Império, desde sua "pré-história" -os movimentos que antecederam 1822 e a ação emancipadora em si- até as articulações políticas do Segundo Reinado.
Reforça interpretações expostas em livros anteriores e ocasionalmente as adensa, como na constatação da precariedade da propalada -e, no seu entender, falsa- estabilidade política do Segundo Reinado.
Identifica problemas que a historiografia do período, tantas vezes e até recentemente, preferiu negligenciar, prisioneira de apriorismos explicativos. Por exemplo, os contidos e tantas vezes subestimados anseios federalistas que assumiram caráter diverso, mas nem por isso menos incisivo, do localismo manifesto nas independências da América hispânica, ou do localismo alardeado nos tempos da formação do Estado norte-americano.
A leitura de "Capítulos da História do Império" deixa, evidentemente, vazios: textos que não chegaram a ser escritos ou que, por algum motivo, se perderam. O leitor fica com vontade de saber, por exemplo, como Sérgio Buarque desenvolveria a análise da independência política do Brasil ou do importante e quase sempre esquecido período regencial [1831-40]. As ausências, porém, ajudam a destacar quão decisivo é o que agora chega até nós. O que chama atenção, mais uma vez, é a visão do pesquisador em seu laboratório, no exercício de seu ofício; a demonstração do método, o rigor no tratamento das fontes, a disposição de estabelecer relações, a manifestação do inconformismo intelectual, a ânsia de compreender.
O historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda é mais conhecido do que o homem, ainda à espera de uma boa biografia. Até sua morte, em abril de 1982, suas edições mantinham ar envelhecido e descuidado, e sua obra era pouco difundida até nos cursos de história.
Esse panorama editorial, que sofreu descontinuidades, começou a mudar com a publicação, em 1991, dos "Capítulos de Literatura Colonial". O volume organizado por Antonio Candido reúne textos de crítica literária encontrados pela viúva do autor, Maria Amélia. O material, até então inédito, deu visibilidade a uma fase importante: o final dos anos 50, quando ainda se dividia entre os estudos históricos e literários.
"Caminhos e Fronteiras" (1957) foi reeditado em 1994 pela Cia. das Letras, que no ano seguinte relançou "Raízes do Brasil". Pela editora, o grande clássico de Sérgio Buarque já alcançou 33 reimpressões. Depois vieram "Livro dos Prefácios" (1996) e os dois imprescindíveis volumes de "O Espírito e a Letra", sob a organização de Antonio Arnoni Prado, consolidando em livro sua produção de crítica literária entre 1920 e 1959.
Num país apegado a efemérides, revistas e jornais fizeram balanços da obra nos cem anos de nascimento do autor, em 2002. Mas a retomada do projeto editorial só viria com os 70 anos de "Raízes do Brasil", relançado em 2006 em edição comemorativa, de tiragem limitada, sob os cuidados de Lilia Moritz Schwarcz e Ricardo Benzaquem de Araújo.
Em 2008, apareceu pela editora Terceiro Nome a única e curiosa incursão ficcional do autor: "A Viagem a Nápoles", conto publicado em 1931. Ao lado do livro de entrevistas, a peça de ficção dá acesso a uma faceta de Sérgio Buarque ainda desconhecida.
Num país que insiste em acreditar em seu destino inexorável de grande potência, o impacto da inquietude histórica de Sérgio Buarque vem a calhar em pleno século 21, para nos ajudar a "afugentar os demônios da história" e evitar sua manipulação cotidiana.

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